As Fortalezas do Rio Grande do Norte: Casa de Pedra de Pium

Prof. Dr. Lenin Campos Soares

Mapa Mundi de Frederick de Witt

As Casas Fortes são estruturas tipicamente ibéricas que foram construídas no Brasil durante o período colonial. Na Espanha, elas eram as casas senhoriais, as mansões em que habitavam os fidalgos donos da terra, uma versão mais simples, podemos dizer, do castelo. Roberto Airon chama de “castelo da pequena nobreza”. Além da função militar que exerciam, o grande significado social dessas construções estava no prestígio de seus moradores, tais casas com torres eram a residência do indivíduo “cabeça” da linhagem familiar. Sendo a presença da torre (quadrada ou retangular) uma característica importante destas habitações, além de sua solidez, construída com pedras de cantaria, capazes de resistir a maquinaria bélica medieval como catapultas, balestras e trabucos.

Contudo, no contexto português, as casas fortes deixaram de ser as habitações da nobreza feudal desde o século XI, quando D. Dinis instaura uma série de reformas que reduzem o poder dos nobres em favor de si mesmo. É monopólio régio edificar fortificações e obras militares (assim, somente o rei teria um exército, e não vários nobres que poderia usar seus homens para derrubar o rei). As casas forte se tornam então parte do sistema estatal de defesa do recém criado reino de Portugal.

No contexto colonial português, as duas definições se fundem. Elas são construídas na América, Ásia e África, tanto como residência para o fidalgo que era dono daquela terra, como também servia de armazém e como defesa em tempos de guerra para proteger as fronteiras do império português contra invasores. Mas como explica Roberto Airon, o caráter militar se sobrepõe ao uso como habitação, especialmente no que se refere ao método construtivo. As paredes grossas, feitas para resistir as armas medievais, e as janelas românicas, que permitiam a entrada de ar, ao mesmo tempo que permitiam a defesa da construção, são características que não fazem parte de uma construção cujo foco principal fosse a moradia.

No Brasil, segundo Maria Beatriz Silva e Robert Smith, a construção das casas fortes era uma obrigação recebida pelos senhores de engenho desde 1549. Ao findar o século XVI, havia pelo menos quarenta casas fortes na Bahia e mais de sessenta em Pernambuco. Ronaldo Vainfas explica que elas foram as primeiras habitações destes homens, porém ao longo do século XVII, suas funções militares foram sendo abandonadas.

No Brasil, segundo um regimento expedido pelo governador Tomé de Souza, as casas forte poderiam ter baluartes ou torres, no caso da ausência desta última, o recurso seria o alteamento, isto é, construir a estrutura no ponto mais alto da paisagem, permitindo uma visão privilegiada de toda a região. Já o baluarte poderia ser construído com terra e pau-a-pique, quem tinha mais dinheiro construía de pedra ou alvenaria. Ele servia para manter qualquer exército invasor afastado das muralhas e dar mais uma elevação a construção. Segundo Roberto Airon, havia também uma lista de armamentos exigidos nas casas forte como trabucos e arcabuzes; os canhões chamados boca de falcão, armas de pequeno porte, normalmente usados em navios; berços e bercinhos, canhões de pequeno alcance, que estava fixados em uma carreta, um suporte de madeira com rodas; além de lanças, espadas e bestas.

No Rio Grande do Norte, talvez no estágio atual das pesquisas arqueológicas, “não seja possível ainda determinar com exatidão ou precisão a localização de todas as casas fortes que já foram construídas (…), bem como especificar todas as nuances das relações entre estas casas fortes e outros elementos de análise da formação territorial do Brasil e do Rio Grande do Norte” (SILVA, 2010). Porém, algumas das construções foram localizadas. A pesquisa mais recente foi organizada pelo professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Roberto Airon Silva, que através de fontes documentais e identificações in situ, isto é, com o arqueólogo indo até o sítio onde estão localizados os vestígios, construiu uma cartografia das casas fortes potiguares. É ele quem afirma que:

“As casas fortes evidenciadas no espaço do Rio Grande do Norte possuem diversas semelhanças e relações de continuidade com o processo sócio histórico da existência das casas fortes (…) que existiram em outras partes do território colonial do Brasil. No entanto, destacamos que as casas fortes evidenciadas no contexto da capitania do Rio Grande do Norte também possuem sua especificidade e que tal especificidade está presente tanto na sua forma constitutiva material quanto na sua forma de evidência de diferentes (re) ocupações humanas no espaço outrora escolhido para se construir e se utilizar como casas fortes” (SILVA, 2010).

Casa de Pedra de Pium

Localização da Casa de Pedra de Pium.

O registro mais antigo de uma dessas fortificações é a chamada Casa de Pedra de Pium, que faz referência ao contexto da Guerra Brasilíca, entre os portugueses e holandeses pelo controle do nordeste brasileiro produtor de açúcar. Quem primeiro teria localizado o prédio foi, na década de 1980, o membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), Olavo de Medeiros Filho que, no seu livro “No rastro dos Flamengos”, faz referência ao relato de um cronista chamado Roulox Baro, sucessor de Jacob Rabbi na missão da tratar diretamente com os índios tapuia, que declarou terem os portugueses tomado refúgio na casa forte existente no sítio de João Lostão (ou Lostau) Navarro, sogro do tenente coronel Joris Garstman, holandês. Num segundo livro, “Índios do Açu e Seridó”, o historiador identifica a chamada “casa de pedra”, na localidade de Pium, a meia légua do rio Pirangi (atualmente município de Nísia Floresta), como a casa de João Lostão Navarro. Roberto Airon Silva confirma essa informações baseando-se basicamente em três mapas (Frederick de Wit, Cornelius Danckert e Nicholas de Fer), além das crônicas dos holandeses de Gaspar de Barléus, inclusive com mapa, e Gaspar Schmakalden.

Mapa de Gaspar de Barleus (APUD: SILVA, 2010)

Olavo de Medeiros Filho ainda afirma que ela inicialmente teria sido construída por franceses e usada como armazém para a permuta de mercadorias com os indígenas potiguares, porém as pesquisas realizadas pelo arqueólogo Roberto Airon não confirmaram estas conjecturas do historiador. Todavia, as afirmações do mesmo historiador, de que a Casa Forte protegia o porto de Pirangi, e não um engenho, como era comum em outras partes do país, das constantes incursões piratas é provavelmente verdade. A região era um importante porto pesqueiro durante o período colonial. Importante o bastante para quando ocorre a invasão holandesa, ele também ser atacado como foi o Forte dos Reis Magos.

Vista aérea de sítio arqueológico.

Este porto precisava ser controlado pelos holandeses que invadiram o Rio Grande exatamente por causa de sua capacidade de fornecer víveres como carne, farinha, sal e peixes para a alimentação das zonas produtoras de açúcar. Contudo, ele não foi um dos primeiros atacados. Comenta Câmara Cascudo que quem não fugiu para a Paraíba, depois do ataque aos engenho de Cunhaú, que resultou nos mártires, procurou refúgio na casa forte de João Lostão Navarro. Os flamengos então os perseguiram e atacaram a fortificação. Dezesseis portugueses morreram na batalha, Navarro foi capturado e levado como prisioneiros para o Castelo de Keulen. Cascudo diz que ele foi martirizado em Cunhaú. A casa forte foi tomada pelos invasores e se torna seu quartel general, se tornando moradia do conselheiro Pieter Jansen Bas, e base para as tropas. É de lá, por exemplo, que saem as tropas que se batem com os indígenas liderados por Felipe Camarão no rio Guajú.

As fotos acima foram retiradas da tese de doutoramento do prof. Roberto Airon Silva.

Vejamos a descrição arqueológica do monumento:

“Os remanescentes arquitetônicos encontram-se localizados no alto de uma colina de onde se divisa o curso do rio Pium e mais ao longe, no horizonte, o oceano. O material construtivo empregado na edificação é constituído por blocos de arenito ferruginoso (beach rocks) de formas arredondadas ou ligeiramente irregulares. Os blocos maiores têm dimensões aproximadas de 40 a 58 centímetros e os menores de 6 a 10 centímetros. Os blocos maiores estão localizados diferencialmente nas paredes desde as partes mais baixas até as mais altas. Os blocos rochosos foram posicionados nas paredes e os espaços resultantes entre estes foram preenchidos com os blocos menores e com argamassa.

A utilização da técnica construtiva resultou em uma edificação com paredes e demais elementos da estrutura (vãos de portas e janelas) bastante regulares em termos de espessura e composição de blocos rochosos. A espessura das paredes tem a medida de 80 cm, e mantêm essa espessura em toda a estrutura da edificação.

Ressalte-se a existência de elementos estilísticos que emprestam à edificação um invulgar aspecto de diferenciação em suas linhas arquitetônicas. Os vão das portas e janelas são encimados por arcos semi-rebatidos e ressalta-se, ainda, a existência de cunhais. (…) . Provavelmente, existiu um piso de terra batida regular que após o lento desmonte da edificação teve o acréscimo dos restos construtivos. (…) Também se levanta outra hipótese de que pode ter existido um piso de tijoleira, da qual foram encontradas dois exemplares” (SILVA, 2010).

Fotos do acervo do Natal das Antigas

Para Saber Mais:

Carlos Luís Marques Castanheira da Cruz. Casa Forte de Pium.

Olavo de Medeiros. No Rastro dos Flamengos.

Olavo de Medeiros. Índios do Açu e Seridó.

Roberto Airon Silva. Uma arqueologia das casas fortes: organização militar, território e guerra na capitania do Rio Grande - Século XVII.

Ronaldo Vainfas. Dicionário do Brasil colonial: 1500-1808.