A Guerra dos Bárbaros

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

A chamada Guerra dos Bárbaros ou Levante dos Tapuias ou Confederação dos Cariris se inicia em 1687 como reação dos indígenas ao movimento expansionista português sobre os territórios habitados pela população indígena, após a expulsão dos holandeses. Tudo se iniciou com uma ordem régia, de 1654, em que Dom João IV concedia sesmarias (terras) aos soldados e oficiais que haviam participado da Guerra de Pernambuco contra os holandeses. Dentre estes, se destacam João Fernandes Vieira, que recebeu terras na Paraíba; e a família Oliveira Ledo que receberia terras no Rio Grande do Norte. Ambos em território janduí. Os sesmeiros, então, atacaram os indígenas, tentando-os expulsá-los de suas casas. “Não é de estranhar, pois, que tenham sido os Janduí a dar início à reação contra os colonizadores” (DANTAS ET AL, 1992).

Os Janduís expulsaram os sesmeiros de sua terra, mataram colonos e inúmeras cabeças de gado. E, sua vitória, estimulou a reação de outros grupos indígenas como os Paiacús e, em seguida, os Kratiú, Icó, Sucuru, Pega, Panati e Corema. Uma sublevação que incendiou os sertões do Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Pernambuco e Piauí, além de algumas regiões da Bahia. A documentação entre os governadores das capitanias deixa claro o pavor que os ataques indígenas geraram na população de origem portuguesa. Temia-se, inclusive, que os indígenas caminhassem para tomar Natal, (especialmente depois do ataque a Ceará-Mirim, a pouco mais de 30km da capital) expulsando os portugueses da capitania.

Em 1688, já com um ano de guerra, o capitão-mor norte-riograndense, Agostinho César de Andrade, organizou um bando para lutar contra os indígenas. Ele declarava, em nome de Sua Majestade, o Rei de Portugal, que seriam perdoados de seus crimes qualquer um que acudisse ao serviço real e fizesse guerra ao gentio. Também foi declarado com isso que a guerra era justa, o que permitiria escravizar os indígenas que fossem derrotados. Isso atraiu novos soldados para a guerra, ao lado dos portugueses, como Henrique Dias e Domingos Jorge Velho, que haviam participado da Guerra de Pernambuco, e os bandeirantes, vindos de São Paulo. “Estavam criadas, pois, as condições para a radicalização do conflito” (DANTAS ET AL, 1992).

Diz o governador do Estado do Brasil, Matias da Cunha, em 1688:

“Espero que não só terão todas as glorias de degollarem os barbaros, mas a utilidade dos que prisionarem, porque por a guerra ser justa resolvi em Conselho de Estado, que para isso se fez, que fossem captivos todos os Barbaros que nella se prisionassem na forma do Regimento de Sua Magestade de 611.”

Porém, são os indígenas potiguaras a maior parte dos soldados que lutam nessa guerra. O chamado Terço do Camarão era a maior parte do efetivo da Coroa contra os tapuias. E como os potiguaras do litoral tinham uma rixa antiga com todos os tapuias do interior foi fácil para os portugueses direcionarem essa agressividade em nome de seus interesses. O Terço será liderado na guerra pelo coronel Antônio de Albuquerque da Câmara.

A força dos índios era assustadora e advinha de sua união, de suas táticas de guerra além do aprendizado que tiveram com os holandeses e franceses com o uso de armas de fogo. Os índios confederados conseguiam ser mais fortes do que quando atuando através de resistências esparsas. Quando se uniram, e deixaram de lado suas picuinhas vingativas, eles se tornaram uma força a ser temida. Além disso, seu modo de fazer guerra, através de emboscadas e armadilhas, o que fugia do modo europeu e medieval de lutas em campos abertos e seguindo o protocolo de honra da cavalaria medieval, era um grande trunfo.

“... na guerra não dão quartel a ninguém, nem apresentam batalha a cara descoberta, senão com súbitas avançadas e depois por detrás das árvores fazem os seus tiros; usam muito de gritarias para meterem terror”

“que, se este inimigo fizera forma de batalha, depressa fora desbaratado, mas são nações estas fora de todo o uso militar, porque as suas avançadas são de súbito, dando urros que fazem tremer a terra para meterem terror e espanto e logo se espalham e se metem detrás das árvores, fazendo momos como bugios, que sucede as vezes meterem-lhe duas e três armas e rara vez se acerta o tiro pelo jeito que fazem com o corpo”.

(Luís da Câmara Coutinho, 1689)

“e foram contra o inimigo e tiveram peleja por duas horas e vendo o inimigo as mortes que tinham assim como os feridos, fugiram, sendo seguidos por seis dias quando os alcançaram numa serra “mui fragosa de pedrarias e espinhos, onde mataram um soldado e feriram outro, mas fugiram não podendo ser seguidos”

(Manoel Álvares de Morais Navarro, 1710)

Outro elemento que surpreendeu o exército português foi a facilidade com que os indígenas tinham acesso às armas de fogo e a cavalos. Eles conseguiam as armas principalmente através do comércio com piratas e os cavalos eram roubados dos colonos durante o período holandês e criados por eles.

“que trazem os bárbaros grande número de armas de fogo: a... em o das que podiam ter tomado aos moradores do Rio Grande quando os matavam e devastavam aquella Capitania. Uns affirmam que os navios de Piratas que por vezes entravam o Rio Assu (navegável de embarcações maiores por distância de oito léguas em cujas ribeiras havia de uma e outra parte muitos curraes de gado) commerciando com Tapuias Janduins lhe deram as armas e munições com que pelejam: e outros, que tendo o mesmo commércio com elles o Capitão-Mor da Fortaleza do Seara, lhe dera pólvora, e munições que ainda lhe duram”.

Sendo assim, apesar de a princípio a documentação demonstre que os interesses portugueses era de tomar os índios por cativos (como mostramos), como explica Leonardo Dias, com o desenrolar da guerra e a dificuldade de controlá-los a ordem passa a ser expressamente a de exterminá-los, como fica claro em uma carta endereçada ao bandeirante Domingos Jorge Velho em que diz:

“Espero que Vossa Mercê me repita novas de outros maiores sucessos, até finalmente me vir a última, e mais gloriosa de se ter acabado a guerra, e ficarem totalmente extintos os Bárbaros”.

“... muito importante o reparo que Vossa Mercê deve fazer em não consentir que deixem de degolar os Bárbaros grandes só por os captivarem, o que principalmente aos pequenos, e as mulheres de quem não pode haver perigo, que ou fujam, ou se levantem”

A guerra continuou intensa (neste período, houve um verdadeiro perigo ao domínio português no Nordeste brasileiro, em especialmente na capitania do Rio Grande) até, pelo menos, 1692, quando uma grande seca debilitou os índios rebelados. Uma proposta de tratado de paz é então negociada entre o capitão-mor norte-riograndense, Sebastião Pimentel, como representante do rei português, D. Pedro II, e o chefes indígenas: o janduí Canindé, o caratiú Jenipapoaçu, o aycurú Guaycurú e o apapory, que servia de tradutor, Joaquim Codina. Como explica Olavo de Medeiros Filho, por esse tratado, esses nativos prometiam 5 mil guerreiros para lutar do lado português contra invasores estrangeiros ou tribos hostis, e em troca recebiam a garantia de uma área de dez léguas quadradas em torno de suas aldeias e de serem considerados livres, não obstante devessem fornecer uma quota de trabalhadores para as fazendas de gado de portugueses (um sistema que já estava em vigor na América Espanhola e era conhecido como mita ou cuátequil).

O tratado encerrou a primeira fase da guerra, porém, como ele não foi respeitado pelos colonos, que insistiam em invadir as aldeias na tentativa de capturar os nativos para torná-los escravos. Em 1693, um ano após a assinatura do tratado, o governador do Brasil envia o Terço dos Paulistas, liderado por Manuel Álvares de Morais Navarro, com objetivo de povoar as terras e defendê-las, evitando que os indígenas novamente se reagrupassem e reiniciassem a guerra. Estes então recebem terras e já em 1699 causam o que ficou conhecido como Massacre do Jaguaribe. Eles se uniram aos caratiú, liderados por Jenipapoaçu, e marcharam até a aldeia dos paiacús, às margens do rio Jaguaribe, no Ceará. Lá, foram recebidos com festa pelos nativos, que dançaram para eles. Conta o diário do mestre-de-campo Navarro que, durante a dança, o irmão de Jenipapoaçu se aproximou de Navarro com um grupo de nativos, temendo traição dos seus aliados, ele atirou no jovem. O disparo iniciou uma batalha campal, paulistas contra paiacus e caratius, paiacus contra caratius e paulistas, e caratius contra paiacus e paulistas. Sim. Cada um por si. Jenipapoaçu morreu no confronto, apenas dois paulistas caíram mortos, apesar dos inúmeros feridos, centenas de paiacus encontraram seu fim. E pelo menos 300 homens, mulheres e crianças foram capturadas e transformadas em escravos.

Porém não é somente contra os indígenas que Navarro faz sua política. Em 1700, ele está em conflito com os aldeamentos indígenas protegidos pelos jesuítas; em 1703, ele entra em conflito também com os colonos brancos (que começa a expulsar de suas terras). Diz Thiego Franklim Silva que diante de muitas denuncias sobre os abusos de Manuel Álvares de Moraes Navarro e seu terço, o rei decreta a sua prisão. Ele, no entanto, defende-se das acusações alegando que desconhece esta rejeição dos moradores para com o terço e que tinha socorrido a capitania com eficiência contra a hostilidade dos nativos. Contudo, mesmo assim ele é destituído do cargo, e o terço extinto, o que não impede o crescimento contínuo do conflito.

Em 1705, Icós atacaram moradores da ribeira do Jaguaribe; no mesmo ano, os paiacus são aldeados por jesuítas e levados para o Missão de Nossa Senhora da Encarnação, em Vila Flor. Em 1713, uma rebelião no Ceará, entre tribos aldeadas por missionários cristãos, permitiu a fuga dos indígenas. Na Bahia, no mesmo ano, são os portugueses que avançam sobre as aldeias, inclusive as já cristianizadas. No Rio Grande, o capitão-mor, em carta ao ouvidor real, pede a expulsão de todos os tapuias do território da capitania. Em 1714, os Paiacú e Anaké se rebelam novamente. E um novo bando é convocado contra os indígenas, com a promessa que isentava os seus participantes dos impostos (os quintos) reais e prometia-lhes os escravos que fossem capturados. A Carta Régia de 1715 diz:

“se extingam estes bárbaros ou se afugentem de nós tanto que vos fique livre o uso da terra ou se faça neles tal estrago que os intimidem em forma que a mais se não atrevam, e fiquem meus vassalos livres de padecerem semelhantes hostilidades às que agora experimentaram”.

A guerra se mantém até 1720. São trinta e três anos de guerra somente no Rio Grande do Norte. Nesta fase final, a documentação portuguesa tenta justificar a violência contra os indígenas reforçando que eles não eram humanos, eram demoníacos, que sua crueldade era incomparável. Uma carta do governador de Pernambuco, Manoel de Sousa Tavares, em 1708, demonstra isso:

“as grandes extorsões e hostilidades que tem feito nas terras delas os índios de corso nossos inimigos destruindo não só as fazendas de seus moradores, mas tirando inumanamente a vida, sofrendo a sua crueldade a não perdoar até alguns religiosos missionários e com tal excesso ao padre Amaro Barbosa que depois da morte abrirão e lhe tirarão o coração fazendo muitos desafetos as imagens de uma igreja em que entrarão pondo as por terra quebrando lhe apenas e doutros ignominiosamente”.

Esta fase, chamada de Guerra do Açu, não possuí nenhum grande combate. Mas a guerra justa estava de pé o que permitia qualquer homem branco de, em nome do rei de Portugal, matar um indígena. Havia autorização expressa para “toda a guerra ofensiva que puder”. Os únicos a se manifestarem contra a guerra foram os Soldados de Cristo, que constantemente reclamavam sobre como a política militar real atrapalhava os planos missionários. Um exemplo é o relato do padre Sousa Leal sobre as violências e abusos que eram praticados contra os pacificados, isto é, os indígenas cristianizados. Ele descreve atos horrendos realizados no Rio Grande, Ceará, Piauí e Maranhão.

“Não era o gentio senhor de sua liberdade, nem de seus bens, nem de suas mulheres e filhas, nem sequer de suas vidas, pois era de opinião geral naquele sertão que era lícito matá-lo, porque não era cristão e não servia a Deus”.

“o mestre-de-campo organizou um bárbaro folguedo: mandou seus homens soltarem os tapuias que ele tinha preso e obrigando-os a correr; depois, ele e seus amigos, cavalgando atrás deles, cortavam-lhes à cabeça”

Para Saber Mais:

Beatriz Dantas, José Augusto Sampaio e Maria Rosário de Carvalho. Os povos indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço histórico.

Leonardo Dias. A guerra dos bárbaros: manifestação das forças colonizadoras e da resistência nativa na América Portuguesa

Lígio Maia. Aldeias e missões nas capitanias do Ceará e Rio Grande: catequese, violência e rivalidades.

Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil.

Soaraya Geronazzo Araújo. O muro do demônio: economia e cultura na Guerra dos Bárbaros no nordeste colonial do Brasil - séculos XVII e XVIII.

Thyego Franklim da Silva. O terço dos paulistas no sertão do Rio Grande: análise das cartas de sesmarias.