Sesmaria: Terra para Cultivar e Povoar

Por Prof. Ms. Tyego Franklin da Silva

Parte 1 - Sesmarias no Rio Grande (1600-1614)

O acesso às terras no período colonial é um tema relevante para se compreender o processo de ocupação dos territórios do Império português na América, incluindo a capitania do Rio Grande. Diferente do que conhecemos e praticamos hoje em dia – em que as terras podem ser compradas, alugadas, arrendadas, etc. –, no período colonial o acesso à terra era feito como uma mercê régia, um “presente” do rei aos seus súditos. Isso por que a terra era parte do patrimônio da Coroa e ceder seu uso era componente de um antigo jogo de relações entre o rei e seus vassalos, como explica Ruy Cirne Lima, em Pequena História Territorial do Brasil. Essas terras eram concedidas como títulos de sesmarias àqueles que requeriam seu acesso argumentando ter condições para cultivá-las e povoá-las.

A origem das sesmarias remonta o passado medieval de Portugal, ainda em consequência da pandemia de Peste Negra do século XIV, que provocou uma crise demográfica e a escassez de alimentos em toda a Europa. A primeira Lei de Sesmarias foi promulgada pelo rei Fernando I, em 1375, estabelecendo o direito de exploração e posse das terras devolutas (que não estavam sendo aproveitadas, principalmente aquelas cujos ocupantes morreram na pandemia), mas exigindo daqueles que a recebiam o povoamento e o cultivo. Eram formas de garantir o repovoamento de Portugal e o retorno da produção agrícola, principalmente de cereais. A punição para os sesmeiros que não cumprissem a exigência era a de as terras serem devolvidas à Coroa, como explica Carmen Alveal em sua tese de doutorado.

Apesar de pensada para uma situação específica de Portugal, a Lei de Sesmarias foi aplicada também nas possessões portuguesas no ultramar – o que incluía o Brasil, mas também Angola e Moçambique – por meio das Ordenações Filipinas, mantendo-se em prática durante todo o período colonial. Na América ela ganhou outras proporções, pois a vastidão dos territórios conquistados por Portugal permitia que os interessados em obter terras para produzir e povoar pedissem grandes extensões, algumas com mais de 50 léguas (por volta de 241 km, quase a distância de Natal a Recife, que é de 287 km), como explica Laura Varela, em seu As Sesmarias Portuguesas e o Fundamento do Cultivo. Os sujeitos poderiam, inclusive, acumular mais de uma sesmaria em seu nome. Essa realidade caracterizou o período inicial de colonização, em que as terras mais interioranas, os sertões, passaram a ser divididas em grandes sesmarias, para indivíduos, famílias ou grupos que as pediam com a justificativa de povoá-las e produzir nelas. Estendendo-se até 1697, quando a Lei de Sesmarias foi regulamentada com o objetivo de padronizar o tamanho das terras concedidas e resolver de vez as queixas de abusos no tamanho das terras doadas (ALVEAL, 2007).

Nos termos das vilas e cidades (perímetro “urbano”), as sesmarias eram concedidas com menores dimensões, geralmente medidas em braças, destinadas à construção de casas, comércios e oficinas. Essas sesmarias eram conhecidas, também, como chãos de terra e eram concedidas pelo Senado da Câmara da cidade ou vila em questão.

As primeiras sesmarias concedidas no território da capitania do Rio Grande datam dos anos iniciais de ocupação, doadas pelo capitão-mor, representante máximo do rei na capitania. As informações sobre as primeiras sesmarias concedidas estão presentes em um documento histórico conhecido como Auto de Repartição de terras da capitania do Rio Grande, escrito em 1614, sob ordem do capitão-mor de Pernambuco, Alexandre de Moura, e do desembargador Manoel Pinto da Rocha, com o objetivo de fazer uma devassa (ou levantamento) das terras doadas até então, para o efetivo reconhecimento (ou não) das concessões, buscando evitar abusos. Foram registradas no Auto de Repartição 186 concessões de sesmarias no Rio Grande, sendo 36 delas de “chãos de terra” no sítio da Cidade do Natal (TEIXEIRA, 2014).

A primeira sesmaria do Rio Grande data de 9 de janeiro de 1600, concedida pelo capitão-mor e governador de Pernambuco Manuel Mascarenhas Homem a João Rodrigues Colaço, às margens do Rio Potengi, com 2500 braças de dimensão (4,5 km). Não é possível determinar a localização exata dessas terras, porém pode-se inferir que ficavam à beira-rio, entre a Fortaleza dos Reis Magos e onde hoje encontra-se o Passo da Pátria, em Natal. Pois, posteriormente, essas terras foram vendidas ao padre Gaspar Gonçalves da Rocha, onde, em 1614, já haviam relatos do cultivo de roçarias. Vale destacar que Rodrigues Colaço exerceu o cargo de capitão da Fortaleza dos Reis Magos da Barra do Rio Grande entre 1600 e 1603 (GALVÃO, 1979), sucedendo Manuel de Mascarenhas Homem que, para todos os efeitos, foi nomeado pelo Governo Geral como capitão-mor da conquista e fundação do Forte dos Reis Magos, responsável pela administração do Rio Grande nos seus primeiros anos pós-conquista. Porém, o primeiro a receber o posto de capitão-mor do Rio Grande foi Jerônimo de Albuquerque, em 1603 (FONSECA, 2018).

A segunda sesmaria já foi concedida pelo capitão-mor João Rodrigues Colaço aos padres jesuítas da Companhia de Jesus, na margem norte do Potengi, em 6 de julho de 1600. As terras tinham uma légua e meia de comprimento por uma de largura (7,2 x 6,1 km) e, em 1614, haviam roçarias de mantimentos e gado vacum (criação de vacas) nelas. Em 7 de janeiro 1607, o capitão-mor da época, Jerônimo de Albuquerque, concedeu mais uma sesmaria aos padres da Companhia de Jesus, esta nas proximidades da Lagoa do Guajiru (atual Lagoa de Extremoz), estendendo-se até a margem do riacho Jaguaribe, pequeno afluente do Potengi, “defronte a cidade”. Seriam as terras que hoje compreende boa parte da Zona Norte de Natal e que, naquele período, abrigavam as principais aldeias do potiguara nas proximidades do sítio da Cidade do Natal, incluindo a aldeia de Potiguaçu. Na localidade mais próxima da lagoa, os jesuítas estabeleceram a Missão do Guajiru, em 1679, construíram a Igreja de São Miguel e passaram a exercer a missão de catequese dos indígenas mais próxima da Cidade do Natal (LOPES, 2003).


Parte 2: Terras em litígio no Rio Grande seiscentista

 

Apesar da possibilidade de solicitações de sesmarias com grandes extensões, havia o interesse da Coroa e das autoridades coloniais em se evitar abusos, garantido que as terras concedidas fossem de fato aproveitadas para o povoamento dos colonos e para a produção dos itens necessários para a subsistência da colônia e para a exportação. O objetivo principal era prover rendimentos (o dízimo) para os cofres da Coroa, a Fazenda Régia. Dessa forma, o Auto de Repartição de Terras da Capitania do Rio Grande, embasado no Alvará Régio de 28 de setembro de 1612, representa a forma com que as autoridades régias no Brasil levantaram as informações sobre as terras concedidas: seus tamanhos, sesmeiros, localização e, principalmente, se elas estavam sendo aproveitadas pelos sesmeiros.

Por serem terras boas “para nelas se fazerem engenhos e outras fábricas e benfeitorias” (Alvará Régio de 28 de setembro de 1612), as longas extensões de terra, inicialmente doadas a uma única pessoa, deveriam ser “repartidas” com outros colonos, com a finalidade de prover o seu bom aproveitamento. O que motivou a realização da devassa nas sesmarias concedidas no Rio Grande foram as denúncias de grandes extensões de terras nas mãos de poucos sesmeiros e que estes não estariam aproveitando de forma eficaz.

O responsável pelos “abusos” na concessão das sesmarias seria o capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, que concedeu grandes dimensões de terras para seus próprios filhos em regiões importantes da capitania. Em 2 de maio de 1604, o capitão-mor deu uma sesmaria com 5 mil braças nas várzeas do Rio Cunhaú, correspondendo a uma área de 121 km², aos seus filhos Antônio e Matias de Albuquerque. Um ano depois, em 20 de agosto de 1605, Jerônimo de Albuquerque também concedeu aos seus filhos “uma data que são duas salinas que estão corenta (40) leguas daquy para a banda do norte”. Considerando serem essas nas terras do delta do rio Açu, o pesquisador Câmara Cascudo, em seu Nomes da Terra, infere que esta “orla marítima fora sempre frequentada na extração do sal”, devido à sedimentação espontânea, provocada pelas condições do terreno. Outra sesmaria que chamava a atenção pelo tamanho foi a concedida aos padres da Companhia de Jesus, em 7 de janeiro 1607, compreendendo “quatorze léguas de terra pouco mais ou menos” (67,5km, o dobro da distância entre Natal e Ceará-Mirim).

No mapa abaixo – produzido em 1625, durante o período de dominação holandesa sobre a capitania do Rio Grande – podemos visualizar as áreas onde essas sesmarias estavam inseridas, bem como a presença do marcador espacial do engenho de Cunhaú pelos holandeses, demonstrando a relevância da localidade já no período:

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Percebe-se que as três sesmarias citadas – considere-se que haviam outras denunciadas pelo excesso de terras – eram em áreas importantes da capitania e estavam concentradas nas mãos de poucos indivíduos. No caso das duas concedidas aos filhos do capitão-mor, eram terras que se destacariam pela boa qualidade para a produção agrícola e extração de sal natural. Foram nas terras da várzea do Cunhaú (em amarelo no mapa) que a família de Jerônimo de Albuquerque se fixou e passou a constituir-se como um potentado local na capitania do Rio Grande, adquirindo ainda o sobrenome Albuquerque Maranhão após a participação de Jerônimo de Albuquerque na conquista do Maranhão, em 1615, contra os franceses. Em parte delas, de fato, os Albuquerque Maranhão produziram cana-de-açúcar e ergueram o Engenho Cunhaú, consolidado como uma das principais áreas econômicas da capitania durante praticamente todo o período colonial. Porém, as terras mais distantes do litoral não haviam sido ocupadas pela família.

A segunda sesmaria dos Albuquerque, no delta do rio Açu (em laranja no mapa), estava em uma área que já despertava o interesse pela presença de bancos de sal formados naturalmente, pois o produto estava entre os mais importantes para a economia colonial, principalmente para o charqueamento da carne bovina. Por fim, a sesmaria concedida aos padres da Companhia de Jesus (em vermelho no mapa) encontrava-se em uma área de interesse dos colonos para a ocupação das proximidades da Cidade do Natal, inclusive constando dentro dela importantes fontes de água doce, incluindo o próprio Rio Doce.

Como resultado, o Auto de Repartição permitiu a redistribuição das terras concedidas. Em muitas delas se constatou que elas não haviam sido de fato ocupadas e muito menos havia alguma forma de produção estabelecida (TEIXEIRA, 2014). Os averiguadores, liderados pelo desembargador Manoel Pinto da Rocha, constataram que partes das terras não eram boas para a produção e que muitas estavam devolutas há mais de 6 anos. Assim, o Auto de Repartição proporcionou que a condição das sesmarias concedidas até então fosse alterada integral ou parcialmente, permitindo que outros colonos às solicitassem como sesmarias. A maioria das sesmarias, incluindo as dos herdeiros de Jerônimo de Albuquerque, foram reconfiguradas, ficando apenas a porção realmente ocupada nas mãos dos sesmeiros originais, enquanto o restante pôde ser solicitado por outros sesmeiros.

Para Saber Mais:

Carmen Alveal. Converting land into property in the Portuguese Atlantic World, 16th - 18th century.

Elenize Pereira. Das terras doadas ouvi dizer: doação de sesmarias na fronteira do império.

Fátima Lopes. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte.

Márcia Motta. Sesmarias. IN: Dicionário da terra e do território no Império português.

Rubenilson Teixeira. Terra, casa e produção: repartição de terras da capitania do Rio Grande (1614)

Ruy Cirne Lima. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas.