Alecrim: O Cemitério (Parte 1 - A rejeição)

Cemitério do Alecrim - 1950 (Disponível em https://cronicastaipuenses.blogspot.com/)

Cemitério do Alecrim - 1950 (Disponível em https://cronicastaipuenses.blogspot.com/)

Por Prof. Esp. Bartolomeu Silva Carneiro

Inaugurado em 24 de novembro de 1856, por ordem do então presidente da província norte-rio-grandense, Antônio Bernardo de Passos, o Cemitério do Alecrim, localizado no bairro de mesmo nome é referencialmente condicionado como um espaço de memória e de expressão da diversidade identitária que povoou e ainda povoa a capital potiguar há mais de um século e meio de existência. O historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo dedica o capítulo XXV de sua obra História da Cidade do Natal à narrativa sobre a necessidade de construção daquele que seria o primeiro cemitério público da cidade e à descrição das personagens e das dificuldades logísticas em torno da execução desse projeto público municipal, além de relatar a resistência popular em conceber o local como espaço apropriado pra sepultamentos.

Cascudo relata a tradição, vigente à época, de sepultar os falecidos em igrejas (e no entorno delas, no caso de famílias pobres, escravos e mortos por condenação à pena capital):

“Natal não sabia o que era um cemitério. Enterrava-se o cadáver dentro das igrejas, ao redor delas ou do cruzeiro. A matriz de Nossa Senhora d’Apresentação ergue-se sobre uma base de ossadas humanas, sepultadas durante séculos” (Cascudo, 2010. p.321).

A questão é que, mesmo diante de um crescimento demográfico marcado pelo ritmo lentamente “provinciano” do Século XIX, a cidade enfrentava esporadicamente surtos infecciosos ( de varíola, de febre amarela e de cólera-morbo) que dizimavam vidas rapidamente (e com frequência), muito além da média de falecimentos do cotidiano pacato e estático da Natal oitocentista. O aumento do número de sepultamentos nessas ocasiões, aliados à precariedade da prática, fazia das igrejas focos de maus cheiros e, provavelmente, de proliferação de novos contágios, já que os templos católicos constituíam alguns dos pouquíssimos espaços de aglomeração existentes à época na cidade.

Diante de tal quadro insalubre, a ordem de construção do cemitério - através da Resolução 323, de 2 de agosto de 1855 - surgia como necessidade quase profética do poder público local, haja vista que o ano seguinte à referida ordem ficou conhecido, segundo Cascudo, como o ano da cólera na Província. Quando erguido como aparelho público, o Cemitério de Natal - como ficou conhecido inicialmente -, a capital tinha sua área urbana limitada aos atuais bairros da Ribeira e da Cidade Alta, sendo a atual localidade do cemitério, conhecida à época como Refoles, uma área de sítios, casebres isolados, descampados e vegetações nativas.

Cortejo fúnebre de José Nunes da Silva em direção ao cemitério do Alecrim em 1963. (Foto: acervo pessoal de Dona Antônia da Silva Carneiro).

Cortejo fúnebre de José Nunes da Silva em direção ao cemitério do Alecrim em 1963. (Foto: acervo pessoal de Dona Antônia da Silva Carneiro).

A considerável distância que o cemitério mantinha das áreas centrais e mais povoadas da cidade motivou o presidente Antônio Bernardo de Passos a encomendar um automóvel em Recife (PE) com o objetivo exclusivo de trasladar os caixões dos bairros centrais até o espaço de seus repousos eternos no atual bairro do Alecrim. Há relatos, inclusive, de cortejos iniciados na estação ferroviária da Ribeira que seguiam de trem até a estação do antigo Porto do Oitizeiro (situada na localidade conhecida atualmente como Passo da Pátria), de onde seguiam a pé (e a braços, nas alças do ataúde) até o cemitério. A questão é que, numa cidade marcada por desigualdades sociais e elevados níveis de pobreza e de mortalidade – sobretudo, a infantil - a condução dos mortos através de veículos tracionados a motor era privilégio de poucas famílias, sendo a maior parte dos cortejos conduzidos através de longas caminhadas e revezamento dos condutores dos caixões; prática essa regularmente observada na cidade até o início da década de 1970, como relata a Senhora Antônia da Silva Carneiro.. Ela relata ainda que eram comuns os episódios de desistências, por parte de acompanhantes dos cortejos fúnebres, de completar o trajeto até o seu destino final; sobretudo, antes do séquito enfrentar o aclive da ladeira do Baldo ou quando partia de localidades mais longínquas, como os bairros das Rocas ou de Santos Reis.

Como narrado inicialmente, não era apenas a distância que provocava a resistência popular em considerar o Cemitério do Alecrim como espaço apropriado para os sepultamentos no contexto de sua inauguração e das primeiras décadas de sua atividade pública como local de sepultamentos. A tradicional crença de que os solos sagrados das igrejas eram condição única de salvação das almas ao abrigar, como último destino, os corpos dos falecidos, provocava a recusa da mentalidade social vigente em aceitar o cemitério para seus entes queridos. Isso causava também ásperas divergências com representantes do poder público local, recentemente adeptos de novos entendimentos sobre a questão sanitária na cidade. A solução para o impasse, por vezes, eram os sepultamentos realizados o mais próximo possível da capelinha existente no interior do cemitério. Pode-se afirmar, portanto, que a primeira área valorizada como espaço de enterramentos ali foi o entorno da capela, até então localizada relativamente distante da entrada do cemitério.

Porém, por causa das influências ideológicas do nascente século XX e de suas novas propostas urbanísticas, inspiradas, sobretudo, na influência que Recife, capital pernambucana, exercia sobre Natal, a ideia de atribuir aos templos católicos à função adicional de morada eterna dos falecidos foi paulatinamente sepultada, apesar das dificuldades logísticas de acesso.

Para Saber Mais:

Alcineia Rodrigues dos Santos. O processo de dessacralização da morte e a instalação de cemitérios no Seridó: séculos XIX e XX.

Gumercindo Saraiva. Lendas do Brasil.

Luís da Câmara Cascudo. História da Cidade do Natal.