Uma Sociedade Abolicionista Norte-Riograndense

Cartaz_de_1888_comemorativo_a_Abolição_da_Escravidão_no_Brasil.jpg

Na narrativa tradicional de nossa história, baseada em Tavares de Lyra e Câmara Cascudo, o povo potiguar seria contra a escravização dos negros. E, mesmo aqueles que possuíam escravos, não eram senhores tão terríveis como em outras partes da colônia portuguesa ou do império brasileiro. Exatamente por isso não teriam acontecido aqui revoltas e quilombos, fugas e resistências por parte dos negros. Em outras palavras, nossos historiadores mais antigos afirmam que os escravos eram felizes aonde estavam. Tão felizes que foi necessária a organização de uma sociedade abolicionista por brancos para fazer os negros desejarem acabar com a escravidão.

A Sociedade Libertadora Norte-Riograndense foi fundada em 1º de janeiro de 1888, tendo como presidente o Padre João Maria. Assinaram a sua ata de fundação como primeiro secretário o Dr. Manuel Porfírio de Oliveira Santos, e como segundo secretário, o major Antônio Pinheiro da Câmara. Era o tesoureiro, Urbano Barata. Ela se organizava em duas comissões, uma para a Cidade Alta, que tinha como membros José Antônio, James O’Grady, José Gabriel, Antônio Caldas, Antônio de Viveiros, Dr. Zacarias do Rego Monteiro, Miguel Lobo, Virgílio Uzeda, João Lindolfo Câmara e Ângelo Roseli; e um para a Ribeira, com o padre Francisco Constâncio da Costa, Dr. Luís Antônio Ferreira de Souto, João Avelino Pereira de Vasconcelos, Dr. Belmiro Milânes de Loiola, Olímpio Tavares, Daniel Sampaio, Nicolau Bigois Laurentino, Odilon Garcia, Joaquim Honório, José Leite e Jovino Barreto.

“A Libertadora Norte Rio-grandense, sendo uma associação genuinamente popular, ninguém precisa de convite ou apresentação para ser admitido sócio. Todo cidadão, verdadeiramente amigo da causa abolicionista, pode dar seu nome ao tesoureiro da sociedade, oferecendo uma esportula qualquer para as despesas de propagada”.

Reuniram-se a primeira vez no Teatro Santa Cruz, na rua João Pessoa, mas as reuniões seguintes se deram no Clube Familiar, na Praça da Alegria, atual Praça Padre João Maria. Porém, a maior parte das reuniões se deram, informalment,e no bilhar chamado Libertador, aonde entre tacos de sinuca e copos de bebida os jovens ricos da cidade discutiam as ideias de liberdade e igualdade, e as notícias que chegavam da Corte. Publicaram também o Boletim, quinzenalmente (no 2º e 4º domingo do mês), em que davam notícias dos avanços abolicionistas pelo país.

boletim sociedade libertadora.png

O primeiro número do Boletim, distribuído gratuitamente e custeado pelos sócios, prometia o fim da escravidão em menos de um ano. Sua justificativa era que ela era um impedimento ao progresso, uma prática retrógrada que manteria a província presa ao passado. A libertação dos escravos era, como a Gazeta de Natal, jornal que circulava em 1888, uma “ideia altruísta, humanitária, que não de hoje, mas de muito tempo tem sido uma das supremas aspirações dos povos esclarecidos”. Porém, como diz Silvanei Santos, “no momento em que se afirmar abolicionista podia ser entendido como uma postura progressista e moderna, muitos indivíduos aproveitaram-se desta causa como forma de ganhar notoriedade, sem haver uma preocupação real com os futuros ex-escravos”.

A Sociedade Libertadora Norte-Riograndense não foi o primeiro grupo abolicionista existente no Rio Grande do Norte, mas parece ter sido o primeiro a fazer uso do jornal como ferramenta de divulgação. Na província, a campanha para o fim da escravidão foi iniciada em Mossoró, sendo abolida em março de 1883, contando com a influência do movimento abolicionista do Ceará (que foi a primeira das províncias brasileiras a extinguir o trabalho escravo). Esse é um dos motivos que Silvanei Santos considera para que as ideias da Sociedade Libertadora terem sido recebidas pela sociedade natalense de forma tão pacífica. Não há, nos outros jornais da cidade, nenhuma notícia sobre resistência ou oposição ao que era divulgado no Boletim.

Uma característica importante da Sociedade Libertadora é que ela era composta por indivíduos tanto dos partidos liberal quanto o conservador. Um trecho de uma ata de uma reunião, de 8 de janeiro de 1888, diz: “Dr. Nascimento – dizendo que filiado desde os tempos acadêmicos à causa da democracia, não podia deixar de rejubilar-se por ver presentes n’aquella reunião liberais e conservadores, todos com o único empenho da libertação dos captivos”.

Seus discursos falavam, sobretudo, que as províncias e cidades que estavam libertando seus escravos não tiveram problemas econômicos, e que este ato era além de patriótico, porque garantiria o Brasil tornar-se parte das nações civilizadas, era absolutamente cristão. Inclusive por isso, é o padre João Maria que é colocado como presidente da Sociedade Libertadora, por aclamação. Outro elemento bem interessante sobre os manifestos do Boletim é o perdão que é dada aos senhores de escravos. Afirma-se mais de uma vez que os senhores de escravos são na verdade inocentes. Diz-se: “A ideia do dever e as imposições cathegoricas da moral civilizada não podem acharvos surdos a um apelo, em que se pedem duas libertações: - a dos captivos, e a dos senhores que praticão inconscientemente a maior das injustiças!”.

Conta Cascudo que entre 1887 e a proclamação da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, 134 escravos foram alforriados na capital, por ação da Sociedade Libertadora Norte-Riograndense. O Boletim dava notícias dessas alforrias, a maior dela, aconteceu na chamada “Festa de Estivas”, no município de Extremoz, num encontro no engenho de Estivas, 30 escravos foram libertos, sendo 15 do próprio engenho onde eles estava, e os outros de outros senhores que haviam sido convidados à reunião.

Quando a lei foi promulgada, somente cinco escravos ainda se mantinham nos sítios do município. Estes foram libertados pela força da lei, deixando seus donos furiosos. Porém a Sociedade Libertadora fez grande festa. Cascudo afirma que eles comemoraram com entusiasmo, saindo do bilhar, e tomando as ruas da cidade. Mas a grande festa foi organizada para o dia seguinte, no Clube Familiar. Lá foram proferidos discursos entusiasmados e louvores à Princesa Isabel, ouvidos por convidados brancos. Nenhum negro estava presente.

Número de Escravos na província do Rio Grande do Norte em 1887. Boletim da Sociedade Libertadora Norte-Riograndense (20 de abril de 1888)

Número de Escravos na província do Rio Grande do Norte em 1887. Boletim da Sociedade Libertadora Norte-Riograndense (20 de abril de 1888)

Lenin Campos