A Escravidão Negra no Rio Grande

Pintura “O navio Negreiro”, de Johann Rugendas (1830)

Pintura “O navio Negreiro”, de Johann Rugendas (1830)

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

Segundo Câmara Cascudo, o primeiro escravo negro chegou ao Rio Grande do Norte quinze dias após a fundação da cidade do Natal, em janeiro de 1600, todavia a “escravaria no município (…) não era numerosa” porque não havia, na capital, “indústria justificando a fartura do braço negro cativo”. A argumentação de nosso mais importante historiador faz sentido, afinal o uso da mão de obra negra se concentrava nos engenhos de açúcar, sobretudo. Numa capital, que não era tão povoada, não tinha porquê termos uma quantidade muito grande de escravos domésticos. Para a capital, ele dá os seguintes números:

1808 - 3.963 escravos

1873 - 822 escravos

1881 - 339 escravos

1882 - 321 escravos

1884 — 246 escravos

1887 - 152 escravos

1888 - 5 escravos

Na província, no entanto, a situação parece ser diferente. Afinal aqui temos que levar em conta os engenhos de açúcar - em Goianinha, São José de Mipibu, Macaíba e Ceará-Mirim - e a criação de gado, que ocupava a caatinga sertaneja. Não temos registros anteriores ao século XIX, mas a partir de quando começamos a contabilizar a povoação do território, a população escrava começa crescendo, conjuntamente ao desenvolvimento do cultivo da cana-de-açúcar (em 1850 temos 156 engenhos funcionando). Porém, a partir de 1870, uma queda drástica do número de escravos aparece em todo o Rio Grande, como vemos abaixo:

1805 - 8.072 escravos

1835 - 10.240 escravos

1855 - 20.444 escravos

1870 - 24.236 escravos

1872 - 13.020 escravos

1888 - 3.716 escravos

(Para comparar, segundo os dados do censo demográfico de 1872 a Paraíba, na época Parahyba do Norte, tinha 21.296 cativos, para uma população de 376.226 habitantes. No Ceará foram contados 31.913 escravos para 721.686 pessoas livres e em Pernambuco havia 89.028 escravos para 841.539 habitantes não escravos. A população livre potiguar no mesmo período era de 220.959).

A lógica do historiador Câmara Cascudo, em seu livro História da Cidade do Natal, que não difere daquela adotada por Tavares de Lyra, é da venda de uma imagem que a população potiguar era progressista que, mesmo antes da obrigação legal, já havia abandonado a prática desumana da escravidão. Como explica Rodrigo Wantuir de Araújo, esses autores frisam que não houve uma ruptura muito grande, após a lei Áurea, pois a província já não dependeria do braço africano. É perceptível, no entanto, que eles colocam a história do negro em segundo plano e exaltam as figuras do Padre João Maria e Pedro Velho, como os heróis da abolição (para saber mais sobre isso, acompanhe os próximos textos).

O problema é que, seguindo esta argumentação, Cascudo deixa de levar em consideração um elemento importante: a grande seca de 1877 a 1879. Esta calamidade foi responsável pela morte de pelo menos 500 mil pessoas no sertão nordestino, forçando a migração de muitos e a venda de escravos para outras regiões do país. O Rio Grande do Norte perdera boa parte de sua população rural e viu Natal, por exemplo, inchar com os refugiados. A morte de escravos negros, sem contar sua venda, durante os anos de seca, com certeza, afetaram este número entre 1872 e 1888.

No livro História do Rio Grande do Norte, Cascudo ainda afirma que na província o número de escravos não era compatível nem com as necessidades da indústria açucareira. Diz ele: “O elemento negro não fora decisivo ou indispensável no trabalho da agricultura ou pecuária. [...] Economicamente o escravo não foi indispensável no Rio Grande do Norte e, etnicamente, constituiu uma constante e jamais um determinante”. Em outras palavras, o argumento de uma população escrava pequena tem como objetivo diminuir a importância da ascendência africana da população potiguar. Os potiguares seriam mais brancos, já que os indígenas teriam sido exterminados e poucos negros teriam aqui se fixado. Isso, sem dúvida, teria um valor importante numa sociedade racista como a que vivemos.

Porém, apesar desta narrativa ter um objetivo político, de fato, a população escrava negra no Rio Grande do Norte nunca fora tão grande quanto outras partes do Brasil. Porém isso não quer dizer, em absoluto, que tivéssemos menos escravos do que o restante do país. E, para entender esta situação, precisamos lembrar que se vermos apenas o número de escravos negros, a população pode parecer pequena em comparação com províncias como a Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro, porém, concomitantemente a escravidão negra, no Rio Grande do Norte os índios (que deixam de ser registrados, porém não deixam de existir) também foram utilizados como escravos, principalmente na lida com o gado, apesar disto ser considerado ilegal desde 1757. Como diz Maria Genárdia Moura, a escravidão potiguar adquiriu características bem particulares, dado a especificidades de sua economia, se a compararmos com o resto do Brasil.

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Ainda falando sobre Cascudo, ele também entende a escravidão potiguar como mais branda. Enquanto as minas de ouro e nas terras de café, o escravo era animal de carga, aqui, no Sertão, principalmente, os escravos “transformaram-se em vaqueiros, cantadores, aclamados, padrinhos de ioiô e derrubador de touros”. Os escravos não seriam diferentes dos pequenos proprietários rurais que, pela uniformidade da tarefa, estabeleciam uma identidade de iguais entre escravos e livres. E, por isso, nas boas terras potiguares não teríamos fugas nem quilombos. Infelizmente para Cascudo, as notícias dos jornais negam isso. N’O Brado Conservador, de Assu, por exemplo, em 23 de setembro de 1881, publica-se que Antônio, cativo que tinha por volta de 30 anos, descrito como cabra, isto é, mestiço de negro e mulato, havia fugido e oferece-se 50 mil réis de recompensa para quem devolvê-lo. Em 29 de dezembro do mesmo ano, no mesmo jornal, se oferece o dobro para encontrar Francisco, que valia mais por saber trabalhar no caldeirão do engenho, sabendo fazer rapadura, além de ser sapateiro e tocar viola. Francisco fugira de Luís Gomes, no Alto Oeste, e foi encontrado em Natal.

Cascudo registra o nome dos últimos donos de escravos da capital: Joaquim Inácio Pereira possuía quatro escravos, enquanto a senhora Elvira Augusta Gomes de Melo mantinha dois; Antônio Benevides Seabra de Melo, Dr. Augusto Carlos de Melo L’Eraistre e o capitão Pedro Paulo Vieira de Melo tinham, cada, um único escravo. Também registra que aqueles que haviam mantido seus escravos até a assinatura da Lei Áurea não deixaram seus escravos partirem sem atuação da polícia e sob muitas reclamações. Eles se sentiram atacados no seu direito a propriedade, acusaram a imperatriz de roubar-lhes os negros.

Para Saber Mais:

Hélder Alexandre Macedo. A Escravidão Indígena no Sertão da Capitania do Rio Grande do Norte.

Maria Genárdia Moura. A Escravidão Negra no Rio Grande do Norte: história e historiografia.

Rodrigo Wantuir de Araújo. A Invisibilidade Africana na Historiografia do Rio Grande do Norte.

Rostand Medeiros. Notícias Sobre Fugas de Escravos no Rio Grande do Norte.