Os Tibira e as Çacoaeimbeguira

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

Índio Tupinambá (Viagem a Terra do Brasil, Jean de Léry)

Índio Tupinambá (Viagem a Terra do Brasil, Jean de Léry)

Para um historiador estudar as práticas homoeróticas na América colonial ele se utiliza de três tipos de fontes, como explica o historiador baiano Luiz Mott: esculturas e cerâmicas representando cenas de amor entre dois homens ou duas mulheres, como a coleção Mochica, datada do ano 1000 d.C.; mitos conservados na memória dos nativos e registrados nos manuscritos tradicionais como os Códices Maias (El Chilan Balam, El Popol Buj e o Livro das Profecias) e os relatos dos primeiros cronistas que entraram em contato com os ameríndios. E, sobretudo, o testemunho dos cronistas europeus é bem abundante. Por exemplo, Gonzalo Fernandez de Ovideo, em sua História General y Natural de las Indias, escrita já em 1535, observa horrorizado que o pecado de Sodoma era cometido pelos índios e índias da América. Francisco Lopez de Gomarra, em 1552, narrou chocado seu encontro com estátuas, de ouro e de barro, na península de Yucatan, no México, onde homens “cavalgavam uns aos outros”. O Frei Bernardino de Sahagum ainda explica em sua História General de las cosas de la Nueva España que era comum encontrar homens travestidos, “vestidos com os hábitos de mulheres”. Diz ele que estes índios se mostravam de todo efeminados, no seu vestir, no seu andar, no seu falar e no seu convívio com os outros homens. É Bernardino de Sahagum quem diz, que apesar das diferenças que cada nação tinha ao exercer este hábito, ela estava presente desde o Estreito de Bering ao Estreito de Magalhães.

A documentação brasileira também não é pouca. podemos citar Manoel de Nóbrega, Pero Correia, Jean de Léry. Gabriel Soares de Souza, em seu Tratado Descritivo do Brasil de 1587 diz:

“Não contentes em andarem tão encarniçados na luxúria naturalmente cometida, são muito afeiçoados ao pecado nefando (homossexualidade), entre os quais se não tem por afronta. E o que se serve de macho se tem por valente e contam esta bestialidade por proeza. E nas suas aldeias pelo sertão há alguns que tem tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas”

Pero de Magalhães Gandavo em seu Tratado da Terra do Brasil, de 1576, fala sobre as mulheres:

“Algumas índias deixam todo o exercício de mulheres e, imitando os homens, seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. E cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada. E assim se conservam como marido e mulher”.

Entre os indígenas, os homens que eram amados por outros homens eram conhecidos como tibira e as mulheres que eram amadas por outras mulheres como çacoaeimbeguira. É interessante, no entanto, entender que como na maior parte das etnias indígenas brasileiras o trabalho é definido por gênero, o homem que era tibira realizava as atividades econômicas definidas como femininas, como a agricultura, coleta e artesanato (cerâmica, cestaria, etc.). E em algumas tribos também a pintura corporal. Já a mulher que era çacoaeimbeguira compartilhava do mundo masculino da caça e pesca, guerra e produção de armas. Outro elemento importante: os tibira e as çacoaeimbeguira não se relacionavam somente com outro igual a ele, mas um tibira, por exemplo, podia casar-se com um guerreiro; a çacoaeimbeguira podia relacionar-se com uma jovem que trabalhava produzindo cestas. E, como afirma Estevão Fernandes, tal prática era bem comum em sociedades indígenas brasileiras, sem que houvesse qualquer tipo estigma sobre essas pessoas por parte de seu grupo. Ninguém era mal visto por ser tibira ou çacoaeimbeguira, e estes não estavam isolados da sociedade relacionando-se apenas entre si. E essa percepção das relações homoeróticas como naturais incomodou bastante o invasor europeu.

Vista do Forte de São Luís, no Maranhão.

Vista do Forte de São Luís, no Maranhão.

Um exemplo de incômodo é relatado pelo capuchinho francês Yves D’Évreux, em 1614, em seu Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614. No Maranhão, ele ordenou a prisão e execução de um índio tibira “para purificar a terra do abominável pecado da sodomia”. O índio, que fora batizado de Dimas por D’Évreux (fazendo referência ao ladrão crucificado com Jesus Cristo), após ser capturado na mata por outros índios, foi amarrado pela cintura a boca de uma canhão, com suas pernas presas a ferro, e quando o canhão foi disparado, seu corpo foi despedaçado. Partes do corpo do índio foram encontradas pelo forte de São Luís. Para não cometer o pecado de assassinato, os franceses ordenaram que outro índio chamado Caruatapirã disparasse o canhão. Este o faz e suas palavras contra o índio tibira são bem interessantes: “Morres por teus crimes, aprovamos tua morte e eu mesmo quero pôr fogo no canhão para que saibam e vejam os franceses que detestamos as sujeiras que cometeste”. Caruatapirã, principal da tribo, quer manter uma relação amistosa com os franceses e por isso aquiesce da morte do tibira, André Bernardo ainda informa que após o assassinato, Caruatapirã passou a ameaçar os outros índios do mesmo fim caso discordassem dele. Mas o tibira não morre em silêncio. O capuchinho não deixa de registrar nem seu último desejo do índio, fumar petum (tabaco), nem suas últimas palavras: “Vou morrer, mas não tenho nenhum medo de Jurupari (o diabo). Eu sou um filho de Deus”. .

Para Saber Mais:

André Bernardo. Índios gays: amor e ódio na colônia.

Estevão Rafael Fernandes. Homossexualidade indígena no Brasil: desafios de uma pesquisa.

Gabriel Soares de Souza. Tratado descritivo do Brasil.

Luiz Mott. Etno-história da homossexualidade na América Latina.

Pero de Magalhães Gandavo. Tratado da Terra do Brasil.

Yves D’Évereux. Viagem ao Norte do Brasil.

Zenaide Alves. Inquisição e homossexualidade na colônia.